quarta-feira, 6 de abril de 2011

O dom de si


Hoje em dia pensar em vocação é um tema adormecido ou esquecido para muitas pessoas. Isso ocorre porque há na cultura moderna, uma tendência maior de olhar mais para fora de si do que para dentro de si e a vocação é algo escondido no profundo do nosso ser, diz respeito a nossa própria existência.

Podemos dizer que a vocação está em cada um como um mistério a ser decifrado. Cada pessoa precisa no decorrer da sua vida trilhar o caminho que a ajude a decifrar o mistério contido em si mesma e aí descobrir a sua vocação, o seu chamado essencial de ser e agir, que é único e irrepetível. “O homem é ontologicamente mistério… a vocação é um modo de aceitar essa realidade tentando corresponder a ela, como pode ser o ingresso no Mistério, um dar espaço para Deus na própria vida a fim de que o próprio mistério pessoal se torne decifrável. (…) A vocação, entendida segundo a doutrina cristã é, ao mesmo tempo, revelação e dilatação do próprio mistério.” (Amedeo Cencini – Redescobrindo o Mistério p. 10). Em função disso fica evidente que a perda do senso de mistério gera uma cultura e uma atitude antivocacionais.

A vocação toca a pessoa no modo como ela deve viver a vida cristã, o seu batismo – como leigo, leigo consagrado, religioso ou sacerdote – e também se relaciona ao seu estado de vida – o chamado ao matrimônio, à castidade consagrada ou o sacerdócio. Os modos de viver o batismo e o estados de vida estão logicamente correlacionados, dizem respeito a uma única vocação da pessoa e são coerentes entre si. Cada pessoa deveria descobrir primeiramente sua vocação (o modo de viver o batismo) e a partir dela o seu estado de vida.

Mas a vocação atinge ainda de modo mais profundo a vida de cada um. Deus quer fazer de cada filho seu uma obra de arte e obra de arte é coisa única. A partir do momento em que a pessoa descobre a sua vocação, dentro deste chamado específico encontrará um chamado mais profundo que revela algo de muito pessoal sobre como ela deve ser e agir na sua própria vocação, ou seja, cada pessoa leiga que vive o matrimônio terá um chamado específico dentro desta realidade, algo de único e irrepetível; também um leigo consagrado seja no matrimônio ou no celibato terá um chamado pessoal específico na vivência da sua consagração que só ele poderá realizar; o mesmo se dá para o religioso ou sacerdote.

É comum chamarmos esse chamado mais profundo e específico, que existe na vocação de cada pessoa, de missão pessoal. É um chamado que Deus faz a cada um na particularidade da sua vida mesmo dentro de uma comunidade ou de um carisma. A realização da missão pessoal acontece no dia-a-dia nas decisões, na história, no trabalho etc. É portanto imprescindível que cada pessoa descubra o ponto irrepetível que Deus colocou em sua vida, algo que já está presente dentro de si e é revelado pelas circunstâncias.

Tudo isso é muito importante porque o fato da vocação e missão pessoal serem únicos para cada ser humano, de darem sentido à vida de cada pessoa, significa que a realização plena de cada um e a sua felicidade dependem da vivência desta vocação. Contudo para vivê-la é preciso antes encontrá-la.

Encontrar a vocação é descobrir para que viemos ao mundo, para que Deus nos criou, se descobrirmos isso, descobriremos o sentido do nosso existir e o caminho da nossa mais plena realização. Muitas pessoas vivem frustradas, sem sentido, sem realização porque se deixaram levar pela vida e não chegaram a fazer essa descoberta da própria vocação. Alguns até fizeram, mas pararam aí sem chegar a aprofundar a descoberta para encontrar o seu chamado único e irrepetível, o que também gera frustração e desilusão. A auto-realização plena verdadeira é aquela que coincide com o projeto de Deus para a vida de cada um (esse projeto é o chamado, a vocação e missão pessoal) pois só nele a pessoa pode comprometer-se e dar o melhor de si mesma, e alcançar o maior grau de santidade.

Para chegar à maturidade da fé é fundamental alcançar a maturidade da vocação. Aquele que não descobre, não abraça e não se entrega à sua vocação não consegue atingir a maturidade da fé. Por isso também é que cada pessoa precisa descobrir e aceitar a sua vocação.

O processo de descoberta da vocação deveria acompanhar o desenvolvimento humano de cada pessoa. Uma preparação que se inicia desde a infância no seio da família; depois segue adiante na pré-adolescência com a descoberta da identidade pessoal e com os anseios, sonhos e expectativas para a vida adulta, este é o momento de encontrar modelos e de se deixar atrair por eles. Na adolescência, uma fase de crises, esse processo continua, é momento de descobrir que é preciso assumir a responsabilidade com a própria. Chegando à juventude amadurecem as escolhas da vida, este é o tempo determinante na descoberta da vocação, em que o jovem deveria se questionar de modo mais intenso sobre os seus anseios, seus dons e fraquezas, sua disponibilidade de servir, para chegar num ponto preciso e perceber a responsabilidade necessária para assumir o chamado. A partir da descoberta da vocação, na fase adulta, é momento da definição do estado de vida, que deve ser coerente com a própria vocação.

À medida que a pessoa assume sua vocação e estado de vida ela começa a trilhar um caminho de aprofundamento na vivência destas escolhas que levará a descobrir o ponto irrepetível que Deus colocou em sua vida, a missão pessoal. Em todo esse processo se faz necessário um acompanhamento pessoal com um orientador ou diretor espiritual. Essa ajuda é importantíssima para compreender a própria vocação.

Descobrir a própria vocação implica em viver o seu mistério de modo autêntico. “O mistério de cada pessoa é concomitantemente aberto ao infinito e encarnado no tempo e no espaço por meio de formas e limites que a história original de cada indivíduo contribui para traçar e fixar” (Amedeo Cencini – Redescobrindo o Mistério p. 10). Viver o mistério de modo autêntico é, na verdade, decifrá-lo no decorrer do progresso da própria vida, a partir dos pontos fundamentais da nossa história de forma a aceitar a própria vocação. Quem não sabe se abrir para o mistério contido em si, fecha-se também para algo que proporciona o conhecimento pleno de si (das suas aspirações e vulnerabilidades) e da própria vocação.

Para descobrir a própria vocação é preciso trilhar um caminho de discernimento. É preciso entender que vocação não se dá por acaso na vida de alguém e também não é uma escolha aleatória que se faz diante de várias alternativas, mas está escrita no coração de cada pessoa desde o momento no qual Deus a criou. Por isso para encontrar a própria vocação é preciso cavar dentro da sua própria história e ir descobrindo o fio que liga os fatos da sua vida, as intervenções e manifestações de Deus que apontam para algo específico. É reconhecer, dentro da própria história, o projeto de Deus que lhe chama para uma missão.

Colocar-se diante do próprio mistério é o primeiro passo para um discernimento vocacional. Significa ler o Mistério do amor de Deus dentro do mistério da própria existência. Mas para isso é preciso identificar as formas pelas quais o mistério pessoal se serve para revelar-se. Nossa vida está repleta de sinais e de símbolos que nos introduzem no mistério de nós mesmos, ou que apontam para ele. O mistério está sempre dentro de nós e se torna perceptível de vários modos: nos atos informais, como um jogo, um momento de descontração, a forma de rir etc; nos momentos em que nos deparamos com a dor, o sofrimento, a perda, o luto que podem despertar atitudes de fuga, resignação, distância, luta, aceitação etc; também nos momentos de solidão e no modo de vivermos a intimidade e a relação conosco e com os outros; e principalmente nos critérios que cada um estabelece para sua satisfação ou insatisfação, aquilo que nos torna felizes ou infelizes. Há também uma atitude existencial muito significativa que ajuda a revelar o mistério do próprio eu: deixar emergir aquela pergunta que habita e ressoa no seu íntimo, mas que nem sempre se sabe formular de modo adequado.

Identificar essa pergunta, que cada um traz dentro de si significa entender o porquê de certo caminho ou de certa busca. Ela revela o que realmente o coração anseia. Diante disso num processo de descoberta da vocação é muito importante se questionar, sabendo fazer as perguntas certas e dando a elas uma relação de continuidade, formando uma cadeia de interrogações que conduzam a raiz daquilo que se está procurando. Saber isso é fundamental para uma decisão vocacional, essa é a primeira pergunta que devemos responder a Deus quando começamos a buscar a nossa vocação: O que procuramos? Foi a pergunta de Jesus para André e Felipe que o seguiam: “O que procurais”, e eles responderam “Rabi, onde moras?”.

A descoberta da vocação é um trabalho de construção de si mesmo, da sua própria identidade. Um trabalho que exige atenção, escuta, paciência, docilidade para acolher a palavra de Deus, sensibilidade e também a ajuda de um orientador ou diretor espiritual. O orientador é quem ensina distinguir a voz de Deus e também a responder ao chamado que Ele faz, assim como foi a ajuda de Heli para Samuel (cf Sm 3, 3-19).

Neste processo, para ouvir o chamado é preciso estar atento como Samuel que repousava junto a arca. Faz-se necessário estar na presença de Deus, o que acontece por uma vida de oração fecunda. Também é preciso desejar acolher a vontade de Deus para poder ouvi-lo. “Fala, Senhor, que teu servo escuta”

O chamado é entendido e decifrado a partir de uma “experiência pessoal com Deus”. Nessa experiência Ele revela o seu projeto para nós, assim como fez com Moisés (cf Ex 3; 4) e Pedro (Jo 21,15-19). Para atender a esse chamado é preciso tirar as sandálias, ou seja, se despir dos próprios medos, incertezas, preconceitos, inseguranças e também da vontade de querer controlar e conduzir a própria vida por si mesmo. É preciso despir-se da lógica humana para entender as coisas de Deus pela sabedoria do Espírito.

Diante de um chamado é natural ter dúvidas, medo das conseqüências e tentar esquivar-se. Moisés também passou por isso. É a força da experiência de Deus que dá coragem para vencer o medo e responder ao chamado. Pedro também teve medo das conseqüências de seguir Jesus e por isso O negou três vezes (Jo 18,17. 25-26), mas depois da experiência do olhar de Jesus entendeu o Seu amor e, então, deu sua resposta assumindo sua vocação (Jo 21, 15-19).

A vocação autêntica nasce no terreno da gratidão, pois a vocação é uma resposta, não é uma iniciativa da pessoa. O trabalho de leitura da própria vida deve levar precisamente, a essa atitude interior de gratidão. Pois deve levar a pessoa a reconhecer todo bem que recebeu – bens dados por Deus e também benefícios recebidos por tantas mediações humanas que são utilizadas por Deus – e chegar a consciência de que (em qualquer caso ou situação da sua vida, por pior que tenha sido) esse bem é sempre muito maior que tudo aquilo de negativo que faz parte da sua própria história. Essa descoberta desperta a pessoa a conceber a oferta de si própria dentro da opção vocacional como uma conseqüência lógica e inevitável, como um ato livre porque é determinado pelo amor, mas também como um dever porque se posiciona diante do amor de Deus que a chama e a impele a dar uma resposta: o dom de si.

Luciane Cristina Mendes Bidóia